terça-feira, 14 de outubro de 2014

Você tem certeza?



Na indicação para tocar a campainha somente uma vez, um adesivo vermelho com letras brancas, sorrateiramente colocado ali, grita "VOCÊ TEM CERTEZA?". O dedo paira no ar ante a pergunta incisiva  Ela parece ser feita diretamente para ele. Não, não tem certeza.

Dá um passo atrás, olha para os lados. Os outros apartamentos parecem vazios. As portas enfileiradas estão tão fechadas com tanta certeza que ele duvida que algum dia estiveram abertas. O corredor está mortalmente silencioso e abafado. Ele olha o relógio, há horas parece parado. E se ainda não fosse a hora? Iria incomodar, não queria ser um estorvo para ninguém.

O relógio se nega a lhe informar as horas certas. Um resquício de luz risca o corredor vindo de uma fina janela alta. Não consegue definir nem se lá fora é dia ou noite.Será que ele se atrasou? Talvez não haja mais ninguém lá.

Talvez ele não devesse estar ali. Sabe que uma vez dentro do labirinto vai penar muito para sair. Mas algo o imantiza ali. Um fio dourado o prende à porta. O adesivo continua gritando "VOCÊ TEM CERTEZA?".

O velho elevador para. Sua porta abre rangendo. Ele espera que outra alma passe por lá. Não consegue vê-lo aberto, mas o imagina assim. Com o espelho refletindo o quadro da parede oposta no corredor. Espera  companhia. Ninguém vem. E se ele fugisse. Ignorasse o ímã, o fio dourado invisível e corresse para o elevador, apertasse qualquer número e esperasse tudo desaparecer. "VOCÊ TEM CERTEZA?". Não, ele também não tinha certeza disso.

Não há como fugir. Toma o fôlego todo de uma fez, aperta a campainha e espera. Espera o monstro. Espera o mistério. Espera por um pouco de ar. Espera uma resposta. Já não tem certeza de que deveria ter apertado aquele botão. O tempo ainda está suspenso. Talvez dê tempo de pegar o elevador ainda aberto. Faz tenção de ir embora. O barulho da chave quebra a fuga. A porta abre preguiçosamente. A imagem lhe invade o corpo. Um manto vermelho iluminando o rosto branco e pintado. Os olhos castanhos fixaram-se nos seus por um momento.

 - Você veio. Cheguei a duvidar. Está atrasado.

Atrasado?  Não se lembra de ter agendado aquela visita. Não sabe o que faz aqui.A sala minúscula está entulhada de anjos, fadas e cristais. Do teto despencam fios invisíveis com pássaros de papel dobrado. A luminária de cacos de vidro coloridos desenha vários arco iris nas paredes repletas de santos  e magos. Pufes azuis, amarelos e verdes fazem a vez de sofá. Na mesa de canto, observa dois copos dourados com água pela metade, em um deles é possível ver a marca do batom.

O cabelo vermelho contrasta com o robe verde água que ela usa. O colorido a la Khalo o hipnotiza e o acalenta. Precisava estar ali.Assustadoramente, a sensação de aconchego toma conta dele. Ao lado da porta fechada, percebe uma vaca de bronze olhando para ele. Os olhos do animal de bronze lhe atravessam o peito. Desvia o olhar um instante e depois repara que a estátua tem as órbitas dos olhos vazados. Mas a ruiva passou por ali. O cheiro de amaciante, naftalina e incenso faz a cabeça dele girar. Fez uma pergunta e ele é incapaz de responder.

-Gosta de chá de romã com mel?

Não tem certeza que goste. A luz do abajur colorido fragmenta o seu rosto. A janela fechada com grossas cortinas não permitem que ele veja lá fora. Ainda é dia? Tem poucas lembranças antes daquela sala. O bilhete com endereço e horário na rua quente e abafada. O elevador barulhento. O relógio do pulso marcando dez pras seis há muito tempo. O relógio era do seu pai que ganhara de seu avó. As iniciais dele ainda estavam lá. C.B..

-Está com pressa? Não vai antes do chá.

Ela flutuava sobre o chão de madeira com suas pantufas azuis. Seu punho de porcelana parecia quebrar segurando a bandeja com duas chávenas de chá. Não.Ele estava com pressa. Sentia que não precisava mais ir a lugar algum. Começava a ter certeza de que estava no lugar certo.

-Às vezes dói, né?

Sentia o cheiro de avelã da mancha ruiva do seu cabelo. A dor era algo dele. Pessoal. Não queria falar sobre isso. Não queria lembrar dela queimando a alma começando pelo peito e se espalhando até o último fio de cabelo. Quando criança gostava de sentir a onda do mar batendo contra o peito e o derrubado na água. Assim, submerso e zonzo, quase esquecia que ela estava lá. Ela sempre estivera lá.

- Ela te machucou muito? - A voz quente assim perto o perturbava ainda mais. O toque da mão branca e fria no peito o fez estremecer. Parece estátua.- Tome o chá antes que esfrie, ele vai ajudar.

Dentro da xícara na sua mão, no alaranjado do líquido, as letras dançavam. Com custo formou a sentença "VOCÊ TEM CERTEZA?". Não tinha. Nunca gostou de chá. Sempre preferiu whisky puro,  sem gelo.O álcool o ajudava a controlar as vozes, as dores, os sentimentos.  Doce. O chá desceu queimando pela garganta. Mas deu misteriosamente uma sensação gostosa de saciedade. Agora se lembrou de que talvez não tenha comido nada o dia todo. Tenta forçar a memória no que fez hoje. Como aquele encontro fora marcado? O que viera fazer naquele apartamento? Nada. Sua memória recente é um breu infinito.

No aparador perto do espelho na parede em frente ao sofá verde, uma série de fotos em preto e branco, que não havia reparado. Parecem rapazes. Mas, olhando bem, em alguns são moças. Alguns jovens, outros nem tanto. Parecem sérios, porém tranquilos. De quem serão tantos retratos? A ruiva provavelmente tem uma família grande.

Tem a impressão de ver os pássaros de papel (ou os anjos e as fadas?) baterem asas. Não tem certeza. Pode ter sido o vento. Quase pode escutá-las. Chega a sentir o vento no rosto. A moça estava para dentro, no quarto, na sala, ou quem sabe na pequena varanda. Com custo consegue ouvi-la cantar alguma canção antiga, dessas que os ventos cantam para embalar berços esquecidos. Na sala somente ele, os anjos e fadas, os passarinhos, os retratos e a vaca de bronze. Pensa em chamá-la,  mas não sabe seu nome. Talvez pudesse gritar. Os animais de papel em revoada pareciam dispostos a atacá-lo. Os rostos dos retratos o observam fixamente. A voz não sai. Tenta mais uma vez, mas ela parece ter sumido de vez. Nem um murmúrio. Os olhos da vaca atravessam agora seu corpo inexistente.

Sobre o sofá, perto da xícara de chá, somente o retrato de um jovem olhando o relógio de pulso marcando dez para seis. Tenho a impressão de que está sossegado e de que não há mais dor. Mas como ter certeza?




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