domingo, 29 de junho de 2014

Personagens
Evas 1, 2, 3 - Executivas, usam o mesmo taier, scarpan, agitadas, querem um lugar ao sol. De repente percebem q seguir a massa talvez não seja o caminho.
Velha: Senhora idosa, muitos aneis e muitas roupas

Cenário: Café Solar, lanchonete/café  muito lotada, com mesinhas para 2 pessoas, seria interessante que a plateia ocupasse as outras mesinhas.

Cena 1: Eva1 entra no café, tropeçando nos outros e pedindo desculpas. Ela equilibra um copo de café grnade em uma mão e na outra várias coisas: cartão, recibo, celular e um guarda chuva)

Eva1- Café Solar,  definitivamente não é  um nome apropriado para um café nesse dia de chuvanome estranho e quente para uma lanchonete lotada em um dia frio e nublado. O barulho da chuva, misturado com o das conversas e com os toques de celular, a deixa zonza. O cheiro de fritura e café embrulham seu estômago vazio. Os ombros caídos doem.  Equilibra um copo grande de café em uma mão e na outra, o cartão, o ticket e um tablet. 

Entre tropeços e empurrões e caras feias, encontra uma mesa. Suja. Ainda guarda as lembranças do último visitante. Desaba na cadeira. Está esquecido ali um jornal. De quando? Não sabe. Demora para reconhecer que dia é hoje. Olha o periódico, mas não o vê. As letras formam imagens estranhas. Um unicórnio listrado. Uma mãe amamentando o filho. Uma bola de meia em pés descalços. Um corpo jogado na estrada. Vê a si mesma na cena da novela de ontem.

Num suspiro, volta-se para o tablet. O mundo chama por ela de dentro do aparelho. Confere sua agenda da tarde. Ainda falta muito para amanhã. Ainda falta muito para sábado. Verifica a caixa de e-mails. A solução virtual para achar o amor perfeito. A televisão dos seus sonhos para a sala não tem. Mais um convite para mais uma rede social que promete alegria eterna e contatos intermináveis. A lista de aniversariantes da semana. Quem é Antônio Alvarez? Uma a uma as redes não a sustentam muito lá. Os doces também a enjoam.

O líquido quente queima-lhe o céu da boca e a ponta da língua. O movimento é mecânico. Não gosta de café. Sempre pede duplo, forte e sem açúcar. O gosto amargo lhe incomoda o paladar. O líquido incomoda o estômago vazio  O scarpin também a incomoda o pé. Mal pode pô-lo no chão quando chega em casa.  Agora, é impossível tirá-lo, o pé não se acostumaria de novo ao formato do sapato para enfrentar a batalha da tarde. Sente o band-aid apertando o mindinho já sem unha. Os ombros ainda carregam o peso do mundo. Horário de almoço. Queria poder tirar a roupa, esticar o corpo, soltar o cabelo, dormir meia hora e ir. Queria encher o peito de ar.

No jornal perdido, as letras dançam em frente aos seus olhos e formam uma frase estranha: "Ilha misteriosa em Titã". Por que olham para tão longe? Não há ilhas misteriosas por aqui? Com céu nublado, através da janela, mal vê os carros que passam na rua. As pessoas molhadas e desfocadas, tal qual um quadro de Monet. Por um instante quer visitar a tal lua distante. Quer se perder por entre as brumas polares do satélite daquele planeta. Quer a falta de gravidade. Quer a falta de café. Quer todos os anéis de Saturno em um toque.

Na mão, o único anel lhe queima a alma. Tem memória vaga sobre aquele dia. Ele é seu vizinho. Cresceram juntos. Foram para a escola juntos. Ela fazia suas lições, não ligava. Ele entrou na faculdade. Ela ajuda a pagar. O casamento está marcado para quando ele acabar o curso ou talvez a pós. E se passar a lua de mel na ilha titânica? Quer se banhar  no lago de etano. Ligeia Mare, lindo nome para um enorme lago de metano e etano líquido. Quer se deixar afogar. Quer ser pó perdido entre os planetas. Entre aqui e lá, ela é só um pontinho esquecido. Esquecível.

O espelho da parede denuncia o cansaço do dia que ainda não terminou. A chuva fria ou a lágrima solitária escorreu o rímel e desmanchou a máscara. Sozinha em Titã quem comentaria sobre seu cabelo crespo? Sobre sua cara limpa? Quem gostaria de saber sobre a última dieta da moda? A quem incomodaria os dois quilos a mais ou a bolsa da moda ou o limite do cartão?

Na mesa a frente, uma velhinha de cabelos borrados mastiga seu pão molhado no café. O pão esfarela pingando roupa infinita. Ela sente náuseas, mas não há nada no estômago. Os dedos cheios de anéis sujos de manteiga. Mãos enrugadas vincadas pelo tempo. Por onde andaram? Que sóis e que mares banharam aqueles anéis e aqueles caminhos? Os óculos perdidos no rosto branco embaciam pelo calor do café. Os olhos dela turvam pelas lágrimas que brotam. Aquela figura com os cabelos manchados e bagunçados, colares coloridos,cachecol roxo e mãos sujas a hipnotiza. Quer saber a sua história. Quer vê-la sem suas marcas. Será que já visitou a ilha misteriosa da lua de Saturno?

A velha ergue os olhos e atravessa os dela. Há um vazio infinito ali. Um buraco negro. O vácuo inexpressivo. Reconhece a si mesma naqueles olhos nulos  e se perde de vez entre o café e Titã.


Sonho impressionista


Poema inspirado no conto Onírico de Jack Duarte e na música Lilac Wine.


O corpo brilha dourado
sob o céu de baunilha
o vento suave e doce
penetra em  seus poros
cantando cantigas medievais
o orvalho úmido e frio
o abraça e o aconchega

Ela está lá
embaixo de uma árvore de lilases
o perfume colorido lhe desenhou o caminho
rosa, verde, amarelo
era uma aquarela  impressionista

Juntos
mundo suspenso
mal pode escutar sua respiração
coração bate em descompasso
tem medo

Mão nas mãos
seus mundos se misturam
seus temores se misturam
suas angústias se dissolvem
seus sonhos os embalam
ele busca nos olhos ao lado
a força para vencer a montanha

Segura seu rosto
se embriaga com o perfume de maçã
seus cabelos são o esconderijo perfeito para mãos dele
perdem-se na eternidade daquele instante

"Finalmente está aqui"

Todo o resto se derrete
como desenho de giz na calçada
depois da chuva

O tremor ignorado
agora, e cada vez, mais forte
o abraço apertado não impede que se vá

Ele acorda no quarto escuro
silêncio sem fim
Dela, guarda  na boca o nome gravado

Na cama ao lado
o buraco da noite
vela os fantasmas do medo
suspensos em árvores lilases









segunda-feira, 23 de junho de 2014

A ilha misteriosa de Titã


Café Solar, nome estranho e quente para uma lanchonete lotada em um dia frio e nublado. O barulho da chuva, misturado com o das conversas e com os toques de celular, a deixa zonza. O cheiro de fritura e café embrulham seu estômago vazio. Os ombros caídos doem.  Equilibra um copo grande de café em uma mão e na outra, o cartão, o ticket e um tablet. 

Entre tropeços e empurrões e caras feias, encontra uma mesa. Suja. Ainda guarda as lembranças do último visitante. Desaba na cadeira. Está esquecido ali um jornal. De quando? Não sabe. Demora para reconhecer que dia é hoje. Olha o periódico, mas não o vê. As letras formam imagens estranhas. Um unicórnio listrado. Uma mãe amamentando o filho. Uma bola de meia em pés descalços. Um corpo jogado na estrada. Vê a si mesma na cena da novela de ontem.

Num suspiro, volta-se para o tablet. O mundo chama por ela de dentro do aparelho. Confere sua agenda da tarde. Ainda falta muito para amanhã. Ainda falta muito para sábado. Verifica a caixa de e-mails. A solução virtual para achar o amor perfeito. A televisão dos seus sonhos para a sala não tem. Mais um convite para mais uma rede social que promete alegria eterna e contatos intermináveis. A lista de aniversariantes da semana. Quem é Antônio Alvarez? Uma a uma as redes não a sustentam muito lá. Os doces também a enjoam.

O líquido quente queima-lhe o céu da boca e a ponta da língua. O movimento é mecânico. Não gosta de café. Sempre pede duplo, forte e sem açúcar. O gosto amargo lhe incomoda o paladar. O líquido incomoda o estômago vazio  O scarpin também a incomoda o pé. Mal pode pô-lo no chão quando chega em casa.  Agora, é impossível tirá-lo, o pé não se acostumaria de novo ao formato do sapato para enfrentar a batalha da tarde. Sente o band-aid apertando o mindinho já sem unha. Os ombros ainda carregam o peso do mundo. Horário de almoço. Queria poder tirar a roupa, esticar o corpo, soltar o cabelo, dormir meia hora e ir. Queria encher o peito de ar.

No jornal perdido, as letras dançam em frente aos seus olhos e formam uma frase estranha: "Ilha misteriosa em Titã". Por que olham para tão longe? Não há ilhas misteriosas por aqui? Com céu nublado, através da janela, mal vê os carros que passam na rua. As pessoas molhadas e desfocadas, tal qual um quadro de Monet. Por um instante quer visitar a tal lua distante. Quer se perder por entre as brumas polares do satélite daquele planeta. Quer a falta de gravidade. Quer a falta de café. Quer todos os anéis de Saturno em um toque.

Na mão, o único anel lhe queima a alma. Tem memória vaga sobre aquele dia. Ele é seu vizinho. Cresceram juntos. Foram para a escola juntos. Ela fazia suas lições, não ligava. Ele entrou na faculdade. Ela ajuda a pagar. O casamento está marcado para quando ele acabar o curso ou talvez a pós. E se passar a lua de mel na ilha titânica? Quer se banhar  no lago de etano. Ligeia Mare, lindo nome para um enorme lago de metano e etano líquido. Quer se deixar afogar. Quer ser pó perdido entre os planetas. Entre aqui e lá, ela é só um pontinho esquecido. Esquecível.

O espelho da parede denuncia o cansaço do dia que ainda não terminou. A chuva fria ou a lágrima solitária escorreu o rímel e desmanchou a máscara. Sozinha em Titã quem comentaria sobre seu cabelo crespo? Sobre sua cara limpa? Quem gostaria de saber sobre a última dieta da moda? A quem incomodaria os dois quilos a mais ou a bolsa da moda ou o limite do cartão?

Na mesa a frente, uma velhinha de cabelos borrados mastiga seu pão molhado no café. O pão esfarela pingando roupa infinita. Ela sente náuseas, mas não há nada no estômago. Os dedos cheios de anéis sujos de manteiga. Mãos enrugadas vincadas pelo tempo. Por onde andaram? Que sóis e que mares banharam aqueles anéis e aqueles caminhos? Os óculos perdidos no rosto branco embaciam pelo calor do café. Os olhos dela turvam pelas lágrimas que brotam. Aquela figura com os cabelos manchados e bagunçados, colares coloridos,cachecol roxo e mãos sujas a hipnotiza. Quer saber a sua história. Quer vê-la sem suas marcas. Será que já visitou a ilha misteriosa da lua de Saturno?

A velha ergue os olhos e atravessa os dela. Há um vazio infinito ali. Um buraco negro. O vácuo inexpressivo. Reconhece a si mesma naqueles olhos nulos  e se perde de vez entre o café e Titã.



sexta-feira, 20 de junho de 2014

Na fronteira para outro mundo



Ela vem a passos firmes e rápidos. Embora pouca as sinta, são as pernas que sabem o caminho. A cabeça o desconhece. O calor do bafo do leão ainda está no seu pescoço. É preciso andar cada vez mais rápido. Mais rápido. Rápido, moça. Ele vai alcançá-la. Suas pegadas ficam marcadas no caminho, porém seus pés quase não tocam o chão. É preciso chegar. Aos poucos, o ar fica mais leve e o mato alto lhe arranha as pernas nuas. Já está chegando. Seu peito pode sentir.A adrenalina rotineira lhe trouxe até aqui. A fronteira para outro mundo.

As estrelas vigiam de longe, Marte também está lá. Há esperança de que ela sobreviva a mais esse dia. As corujas observam a visitante. O que busca aqui todo fim de tarde? Olha para o céu. As nuvens vermelhas na noite clara a angustiam e enchem de coragem. A um passo da vida. A um passo da mudança. Este mundo não a pertence. A cada dia a certeza se intensifica. Quer ir além. Quer os caminhos que ninguém percorreu. Prefere as pedras ao asfalto.Vira-se para frente. Elas estão lá. Elas sempre estão lá. As portas para outra dimensão.

Ao abri-las poderá sentir a brisa do aconchego. Tirará finalmente os sapatos. Uniforme e status de um povo que não a representa. Os pés tocarão de leve o chão. Gosta de senti-los aos poucos tomando a forma própria, é a possibilidade de SER longe da opressão de TER. O frio e a conexão lhe subirão pelas panturrilhas e lhe chegarão ao estômago.  Anseia pelo momento em que o ar mágico gradualmente lhe preencherá a alma e os pulmões. Já sente a paz que emana através da porta.

É necessário se desconectar desse mundo que não a reconhece. Mas o celular vibrando no bolso não colabora. Ela quer sair e ainda lhe pulsam quase dentro de seu corpo. Desliga o aparelho. Não quer ser localizada agora. Solta os cabelos.A sensação de liberdade começa a ganhar vida.

 A lua vermelha lhe tinge a pele que assume a coloração natural. O vento assovia uma canção em seu ouvido. Assopra uma mecha avermelhada em seu rosto. Um movimento mecânico limpa sua face e reorganiza a madeixas. Mas isso não tem mais importância. Sua imagem ficará aqui. O mundo para suspenso. Não há mais movimento. Não há mais sons. O relógio perde o sentido.

Silêncio. Só o bater do coração marca o momento. Mais um passo. Uma chuva de sensações. Mais um instante. Abre as portas e entra dentro de si.