segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Sopro


eu sopro
e você
em grãozinhos de areia
se vai
entre o meu beijo
e a brisa suave da memória

voando
sem asas
com o pó dos meus sentimentos
procurando algum canto perto do mar

entre as ondas e as espumas
algum lugar distante
pra descansar
pra me deixar esquecer

num sopro
dourado
brilhante
calmo
sem medo

e você
pra sempre
longe daqui



domingo, 6 de setembro de 2015

De cristal


De quando em quando, a vida esfrega com gosto em nossa cara que ela é mais frágil que aquele copo de cristal chique, que não suporta a sua esponja de lavar louça, e se rompe sem querer na sua mão. Pode ser depois da comemoração especial de ontem, com todos seus amigos e familiares celebrando sua aprovação no MBA em administração. Afinal aquele TCC quase tirou todo seu sangue e com quase certeza todas as suas horas de sono e boa parte da sua poupança. Seja, por falta de coisa melhor pra fazer, depois da sua ilustre ideia de tirar os (poucos) cristais da casa para limpar pela profunda falta de uso (ou de momento que você julgasse importante o suficiente para sacar as taças com bordinhas douradas e impecavelmente inúteis que por anos acumulam pó na cristaleira trancada na sala de estar).

A dia pode de repente desaparecer numa manhã, quase tarde, qualquer de trabalho.Durante o fazer diário. Depois de algumas décadas fazendo a mesma coisa.Talvez tenha acordado cedo. Preguiça, sono, comuns às 5 da manhã.  Talvez fosse uma sexta feira, poderia ser véspera de um feriado prolongado. Talvez fosse depois de um mês muito quente. Mês comprido, quase interminável, e seco. Talvez estivesse pensando no presente do neto, aquele menino lindamente arteiro e sapeca.Talvez pisasse onde sempre pisou.  Mas talvez não fosse o passo adequado. Talvez a vida tivesse que ser assobrada lentamente na frente de centenas de adolescentes histéricos (e adultos também fora do prumo), por que não sabem o que fazer. Não estava no script escolar, ensaiado e planejado e detalhado todos anos, que um corpo cairia cinco metros para ausência no corredor da escola, na frente das salas de aula. A telha quebrada, o barulho bem forte, a gritaria sem fim. A ausência e o sangue. Será que apesar do baque o protocolo prevalece?

Às vezes, o protocolo pura e simplesmente não existe. Às vezes ela decide ir doce embora. Sem explicação. Sem expectativa. Sem espera. De manhã cedo, antes da quentura o café ou do conforto do pão. Sem esperar um instante. Pro o último beijo. Pra última palavra. Quem sabe ainda tivesse o desejo de tocar mais uma música. Ontem deveria ter saído pra encontrar aqueles amigos que insistiam com a viola e a sanfona e a cantoria desafinada. Ontem devesse ter dado risada com eles. Ignorado os olhares tortos dos que não conseguem entender que, por vezes, não é na voz perfeita ou na inteligência aguçada ou no rosto harmonioso  que a felicidade faz morada. Que a alma sublime. Que nos faz em pleno voo. Devia ter tentado a plenitude ontem. Amanhã não existe. Caiu no breu com seu café, seu violão e sua voz. Silêncio doloroso.

A voz algumas vezes se cala quando ainda teria muito o que dizer. Muito o que gritar. Faltaram os berros que ele deveria dar para que o mundo olhasse para lá. Os olhos que vieram tarde demais. Os gritos de terror na água escura. A falta da força paterna. A falta da proteção da mãe. O frio e o medo invadindo de uma vez a alma. O corpo sendo levado agonizando pra praia. Devolvido nas areias de um resort. A vida interrompida quando devia começar. A dor eterna de um pai carregando parte dos horrores do extremo. O extremo que joga com o futuro como peões num  tabuleiro. Um grande jogo imobiliário. Construa casas pra ganhar, construa prédios, construa hotéis, assim a passagem custa mais cara. Mais cara que o aluguel da propriedade do Morumbi com quatro casas e um hotel no tal jogo de tabuleiro.  Para aquele pai, a passagem custou muito cara. Quanto custa as vidas de uma esposa e dois filhos? Quanto custará sua dor e seu peso por toda a vida?

A vida é um cristal fino, lindo, frágil e delicado, que ganhamos nosso nosso debut no mundo. Mas, apesar da fragilidade, deve ser usado e explorado todos os dias, o dia todo. Como aquela embalagem de requeijão com a data de validade impressa no fundo que serve de copo, de medida, de terrário, de enfeite improvisado em mesa de aniversário surpresa. O nosso cristal também deve ser explorado, seja pra comemorar o ar que entra (por vezes sem esforço, por vezes depois de uma força absurda).  Seja pra tocar uma bela música com eles meio vazios (ou meio cheios?). Seja pra celebrar essa vida que passará sem de onde, sem como, em um fechar e abrir de olhos. Seja pra juntarmos e exigirmos uma sociedade mais humana, mais digna. Uma sociedade que se indigne e que faça valer toda a importância e valor dos cristais que temos conosco.



De quando em quando, a vida esfrega em nossa cara que é mais frágil que aquele copo de cristal chique que não suporta a sua esponja de lavar louça e se rompe sem querer na sua mão, seja depois da comemoração especial de ontem, seja depois da sua ilustre ideia de tirar os (poucos) cristais da casa para limpar pela profunda falta de uso (ou de momento que você julgue importante o suficente para sacar as taças com bordinhas douradas e impecavelmente inuteis).
A dia pode simplesmente desaparecer num dia qualquer de trabalho. Talvez uma sexta feira vespera de um feriado prolongado depois de um mês muito quente, comprido e seco. Talvez ela possa ir na frente de centenas de adolescentes histéricos

quarta-feira, 1 de julho de 2015

A porta abriu devagar. Os olhos demoraram a se acostumar novamente à luz. Quanto tempo durou a viagem? O que importa? Tempo é um conceito antigo, de quando contavam as voltas que a Terra dava no escuro Sol.
O manto de um verde vivíssimo cobre a crosta rosada, tal qual grama, mas ela sabe que não é.
Pseudoplantas adaptadas ao pseudoplaneta adaptado para termos uma existência adaptada à nossa pseudovida.
O teto da cúpula de vidro cobre todo o céu fechando a cúpula. Saturno é assim somente uma sombra sob a projeção da antiga lua, sempre cheia e iluminando as aldeias programadas em torno de praças vazias.
Ela tem uma memória vaga, provavelmente adquirida de uma das muitas histórias que ouviu durante os anos de viagem. Histórias de uma praça arvorada, homens vendendo algo parecido com pequenos passáros brancos, quase pode ouvir o barulho ensurdecedor

Conselho de Classe


Mesma coisa
trabalho
casa
sala
rua
lua

Mesma coisa
Geografia
História
Biologia

Perdido entre inglês e espanhol
buscando um norte português

Rompe cabeças sem peças
vagas ações
nulas propostas
folhas no caminho

Matemática fora de esquadro
avaliação em branco

Na prova dos nove
o futuro chove cântaros
fora daqui


domingo, 28 de junho de 2015

RX



Chapa de um pulmão tísico
A velha bêbada flertando com Vênus
Marca o centro do peito azul escuro

Estrelas pingam rareadas
Onda fria cortando a pele fina
Osso a arrebentar

Coruja pia lá longe
Comprido e doído
Coração arde em febre aqui dentro
Arrepio e delírio
Caminho se esconde lá em frente
Curvo e turvo

Os pés congelados
Não sabem para aonde ir
Enquanto o mundo
Macera parcas decisões





domingo, 7 de junho de 2015

Sinal de Vida


Suor pela nuca
Cabelo úmido

Pálpebras em chumbo
Não há como mantê-las abertas

Força
Débil

Peito cansado
Mãos elípticas
Olhos nublados

Suor
Mãos em palma

A garganta cega
O que se há de fazer?

Navalha em foice
No caminho do peito paralítico

Sopro pelo ouvido oco
Arrepio
Devagar
Corda nina

Sangue transita lentamente
Ruas vazias
Com calma
A vida nas ondas suaves de sua linha







terça-feira, 28 de abril de 2015

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Implacável


A água cai implacável sobre o telhado. O barulho é ensurdecedor. Não há mais como dormir  Tem a certeza de que quer invadir a casa oca. Levar tudo para algum lugar distante. Talvez devesse abrir portas e janelas e deixar a vida ser lavada. Talvez devesse enfrentar a fúria que vem do céu avermelhado daquela madrugada rubra. Talvez fosse melhor o combate desigual. A luz forte ilumina o quarto escuro, em pouco tempo o barulho atinge as janelas sacudindo-as. O mundo vai acabar em água, raio e trovão.
A falta de energia, elétrica e vital, a impede de ter alguma reação maior do que se encolher debaixo das cobertas, que pouco protegem contra a paúra. Queria sair. Queria gritar mais alto que ela. Queria ter a coragem que os outros acham que ela tem. As sombras provocadas por instantes marcam sua memória sonolenta e tomam as formas do passado.
Tudo que não quer é pensar. Pensar nos caminhos encharcados e esburacados dos tempos verbais. Pensar na vida que retomará o curso eterno quando o relógio tocar. Pensar no uniforme já devidamente arrumado na cadeira ao lado. Pensar na inutilidade da sua vida vazia. Pensar no que existirá quando vencer todas as fases do jogo.
Vermelho recortado angularmente em agonia e cerzido às árvores negras. Está claro mas não o suficiente para iluminar o dia que, ela sabe, ainda há de chegar. Não hoje. Não sob os cântaros de água. Não sob esse céu. Não com a tempestade dentro dela.
O vento canta com os galhos. Canção antiga. Profunda. Comprida. Triste. Ela, no fundo, gosta de escutá-lo assim gelado. Mas o cenário tingido de sangue diluído a hipnotiza e assombra. Quase pode sentir o cheiro do ferro derramado. Queria a fé dos lobos para gritar que é mais forte e que não tem medo. Encara a dança das sombras dos galhos até as sombras invadirem novamente o quarto por dois segundos.
Um frio lhe percorre a alma e pára no seu estômago. Congela-o. Os vidros se debatem indefesos. Eles não resistirão muito tempo. Nem o telhado reclamando com razão. Nem ela.
Afasta as cobertas. Levanta-se de uma vez. O chão gelado contrasta com a pele quente. Mas não pode parar. Não deve duvidar. Marcha até a janela. As duas folhas agora abertas. Deixa a chuva, o vento e o canto lhe atingir de uma vez. Dilui-se em  meio ao medo, o canto e a água.