domingo, 6 de setembro de 2015
De cristal
De quando em quando, a vida esfrega com gosto em nossa cara que ela é mais frágil que aquele copo de cristal chique, que não suporta a sua esponja de lavar louça, e se rompe sem querer na sua mão. Pode ser depois da comemoração especial de ontem, com todos seus amigos e familiares celebrando sua aprovação no MBA em administração. Afinal aquele TCC quase tirou todo seu sangue e com quase certeza todas as suas horas de sono e boa parte da sua poupança. Seja, por falta de coisa melhor pra fazer, depois da sua ilustre ideia de tirar os (poucos) cristais da casa para limpar pela profunda falta de uso (ou de momento que você julgasse importante o suficiente para sacar as taças com bordinhas douradas e impecavelmente inúteis que por anos acumulam pó na cristaleira trancada na sala de estar).
A dia pode de repente desaparecer numa manhã, quase tarde, qualquer de trabalho.Durante o fazer diário. Depois de algumas décadas fazendo a mesma coisa.Talvez tenha acordado cedo. Preguiça, sono, comuns às 5 da manhã. Talvez fosse uma sexta feira, poderia ser véspera de um feriado prolongado. Talvez fosse depois de um mês muito quente. Mês comprido, quase interminável, e seco. Talvez estivesse pensando no presente do neto, aquele menino lindamente arteiro e sapeca.Talvez pisasse onde sempre pisou. Mas talvez não fosse o passo adequado. Talvez a vida tivesse que ser assobrada lentamente na frente de centenas de adolescentes histéricos (e adultos também fora do prumo), por que não sabem o que fazer. Não estava no script escolar, ensaiado e planejado e detalhado todos anos, que um corpo cairia cinco metros para ausência no corredor da escola, na frente das salas de aula. A telha quebrada, o barulho bem forte, a gritaria sem fim. A ausência e o sangue. Será que apesar do baque o protocolo prevalece?
Às vezes, o protocolo pura e simplesmente não existe. Às vezes ela decide ir doce embora. Sem explicação. Sem expectativa. Sem espera. De manhã cedo, antes da quentura o café ou do conforto do pão. Sem esperar um instante. Pro o último beijo. Pra última palavra. Quem sabe ainda tivesse o desejo de tocar mais uma música. Ontem deveria ter saído pra encontrar aqueles amigos que insistiam com a viola e a sanfona e a cantoria desafinada. Ontem devesse ter dado risada com eles. Ignorado os olhares tortos dos que não conseguem entender que, por vezes, não é na voz perfeita ou na inteligência aguçada ou no rosto harmonioso que a felicidade faz morada. Que a alma sublime. Que nos faz em pleno voo. Devia ter tentado a plenitude ontem. Amanhã não existe. Caiu no breu com seu café, seu violão e sua voz. Silêncio doloroso.
A voz algumas vezes se cala quando ainda teria muito o que dizer. Muito o que gritar. Faltaram os berros que ele deveria dar para que o mundo olhasse para lá. Os olhos que vieram tarde demais. Os gritos de terror na água escura. A falta da força paterna. A falta da proteção da mãe. O frio e o medo invadindo de uma vez a alma. O corpo sendo levado agonizando pra praia. Devolvido nas areias de um resort. A vida interrompida quando devia começar. A dor eterna de um pai carregando parte dos horrores do extremo. O extremo que joga com o futuro como peões num tabuleiro. Um grande jogo imobiliário. Construa casas pra ganhar, construa prédios, construa hotéis, assim a passagem custa mais cara. Mais cara que o aluguel da propriedade do Morumbi com quatro casas e um hotel no tal jogo de tabuleiro. Para aquele pai, a passagem custou muito cara. Quanto custa as vidas de uma esposa e dois filhos? Quanto custará sua dor e seu peso por toda a vida?
A vida é um cristal fino, lindo, frágil e delicado, que ganhamos nosso nosso debut no mundo. Mas, apesar da fragilidade, deve ser usado e explorado todos os dias, o dia todo. Como aquela embalagem de requeijão com a data de validade impressa no fundo que serve de copo, de medida, de terrário, de enfeite improvisado em mesa de aniversário surpresa. O nosso cristal também deve ser explorado, seja pra comemorar o ar que entra (por vezes sem esforço, por vezes depois de uma força absurda). Seja pra tocar uma bela música com eles meio vazios (ou meio cheios?). Seja pra celebrar essa vida que passará sem de onde, sem como, em um fechar e abrir de olhos. Seja pra juntarmos e exigirmos uma sociedade mais humana, mais digna. Uma sociedade que se indigne e que faça valer toda a importância e valor dos cristais que temos conosco.
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