Estica os pés, mas não toca a água. Sentada na passarela vê bichinhos pretos voarem entre ela e a represa. Sabe que não existem, são somente a luminosidade que não se dá com a pupila. Eles a incomodam, porém são inofensivos.
Respira fundo. Uma dor lacerante entra perfurando o ombro esquerdo e se aloja na cintura. Sente a espada torcer dentro dela. Conta até dez, inspirando profundamente e devagar, sentindo o ar preenchendo seus pulmões e depois escapando devagar. Se você não pensar na dor, ela some. Ela sempre some.
Final da tarde de inverno. O céu limpo e de um azul doído que lhe incomoda, pois faz os pontos alados brincarem cada vez mais rápido na sua retina. Volta o olhar para água escura, estica a perna o quanto pode, realmente não é possível alcançar a água.
O ar ocupa árido seus pulmões. O mundo pesa em suas costas. O vento bate seco e cortante. Um redemoinho nos cabelos meio longos, meio morenos. Sua pele anseia por um toque molhado. Só há a lágrima embotada de terra correndo devagar pelo rosto. Quer aquela água toda subindo pelas pernas e lhe envolvendo no manto gelado.
Não há quase ninguém ali. Ninguém a percebeu sentada sobre na passarela de madeira, balançando as pernas, tentando irritar os peixes que dizem andam por lá. Ninguém deu falta dela. Não muito longe, escuta o barulho do trem.
Ocupa um dos bolsos. A chave na palma da mão lembra que ela tem que voltar. Tudo continua lá à espera dela. Tudo estaticamente como uma fotografia de jornal O retrato da mãe com um meio sorriso na sala, lembrando-a do que deve ser feito. Respira que a dor passa. Zonzeia. Por um instante, parece flutuar sobre a moça sentada na passarela, cujos sapatos pretos e baixos estão alinhados logo ali ao lado. O peito amassado na grade e os olhos pescando peixes inexistentes na água turva.
O celular mudo está no outro bolso, ela se certifica. Nada. Sem toque, sem peixe, sem ar, sem água. Sem nada. Só. Não há quem se importe. Não há quem a perceba. Saiu do escritório como todo dia. Cumprimentou com o olhar os outros , sem palavras, enquanto tomava a rua. Só. Os caminhos em labirinto para pés experientes. Às vezes, o pensamento vageava, mas eles seguiam. Hoje quiseram parar no parque da represa. Talvez precisassem das águas. Talvez precisassem do ar seco. Ou só quisessem parar por parar. Quem vai saber? Quem quer saber? Ela, com certeza, não.
O mundo imóvel no barulho do tem. O ar parado sobre ela. Os pontos bailando sorrateiros. O celular inútil e mudo. Os pés não alcançam a água. O dia trancada com gente que não sabe seu nome. Os peixes não querem aparecer também. Ao lado, os sapatos cansados agora guardam a chave e pedem para ir. Ela não parece preparada para levantar. Os olhos verdes perdidos nas algas que parecem dançar em outra dimensão.
A espada ainda está cravada atravessando o ombro, atingindo o rim. Respira, mas o ar não parece muito disposto a colaborar. Respira que passa. A dor sempre passa. Ela sempre vai. O coração falha. O peso do mundo está no peito. Inspira. Conte até dez. Um. Vai passar. Dois. Sempre passa. Três. Inspira. Quatro. Sente o ar seco tentando ocupar o pulmão. Cinco. Malditos pontos bailarinos. Seis. Se ao menos alcançasse a água. Sete. Um toque. Oito. Só um toque. Nove. Estica mais um pouco e a facada já já some de novo. Dez. Passou. Finalmente o manto gelado e molhado.
Na passarela de madeira, no fim da tarde seca de inverno, agora somente um par de sapatos pretos, baixos e velhos, guardando a chave de um mundo sem dona.