sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Só um toque


Estica os pés, mas não toca a água. Sentada na passarela vê bichinhos pretos voarem entre ela e a represa. Sabe que não existem, são somente a luminosidade que não se dá com a pupila. Eles a incomodam, porém são inofensivos.

Respira fundo. Uma dor lacerante entra perfurando o ombro esquerdo e se aloja na cintura. Sente a espada torcer dentro dela. Conta até dez, inspirando profundamente e devagar, sentindo o ar preenchendo seus pulmões e depois escapando devagar. Se você não pensar na dor, ela some. Ela sempre some.

Final da tarde de inverno. O céu limpo e de um azul doído que lhe incomoda, pois faz os pontos alados brincarem cada vez mais rápido na sua retina. Volta o olhar para água escura, estica a perna o quanto pode, realmente não é possível alcançar a água.

O ar ocupa árido seus pulmões. O mundo pesa em suas costas. O vento bate seco e cortante. Um redemoinho nos cabelos meio longos, meio morenos. Sua pele anseia por um toque molhado. Só há a lágrima embotada de terra correndo devagar pelo rosto. Quer aquela água toda  subindo pelas pernas e lhe envolvendo no manto gelado.

Não há quase ninguém ali. Ninguém a percebeu sentada sobre na passarela de madeira, balançando as pernas, tentando irritar os peixes que dizem andam por lá. Ninguém deu falta dela. Não muito longe, escuta o barulho do trem.

Ocupa um dos bolsos. A chave na palma da mão lembra que ela tem que voltar. Tudo continua lá à espera dela. Tudo estaticamente como uma fotografia de jornal O retrato da mãe com um meio sorriso na sala, lembrando-a do que deve ser feito. Respira que a dor passa. Zonzeia. Por um instante, parece flutuar sobre a moça sentada na passarela, cujos sapatos pretos e baixos estão alinhados logo ali ao lado. O peito amassado na grade e os olhos pescando peixes inexistentes na água turva.

O celular mudo está no outro bolso, ela se certifica. Nada. Sem toque, sem peixe, sem ar, sem água. Sem nada. Só. Não há quem se importe. Não há quem a perceba. Saiu do escritório como todo dia. Cumprimentou com o olhar os outros , sem palavras, enquanto tomava a rua. Só. Os caminhos em labirinto para pés experientes. Às vezes, o pensamento vageava, mas eles seguiam. Hoje quiseram parar no parque da represa. Talvez precisassem das águas. Talvez precisassem do ar seco. Ou só quisessem parar por parar. Quem vai saber? Quem quer saber? Ela, com certeza, não.

O mundo imóvel no barulho do tem. O ar parado sobre ela. Os pontos bailando sorrateiros. O celular inútil e mudo. Os pés não alcançam a água. O dia trancada com gente que não sabe seu nome. Os peixes não querem aparecer também. Ao lado, os sapatos cansados agora guardam a chave e pedem para ir. Ela não parece preparada para levantar. Os olhos verdes perdidos nas algas que parecem dançar em outra dimensão.

A espada ainda está cravada atravessando o ombro, atingindo o rim. Respira, mas o ar não parece muito disposto a colaborar. Respira que passa. A dor sempre passa. Ela sempre vai. O coração falha. O peso do mundo está no peito. Inspira. Conte até dez. Um. Vai passar. Dois. Sempre passa. Três. Inspira. Quatro. Sente o ar seco tentando ocupar o pulmão. Cinco. Malditos pontos bailarinos. Seis. Se ao menos alcançasse a água. Sete. Um toque. Oito. Só um toque. Nove. Estica mais um pouco e a facada já já some de novo. Dez. Passou. Finalmente o manto gelado e molhado.

Na passarela de madeira, no fim da tarde seca de inverno, agora somente um par de sapatos pretos, baixos e velhos, guardando a chave de um mundo sem dona.








segunda-feira, 15 de setembro de 2014

ouro lunar



lua dourada imperatriz do breu
caminhos quase todos descobertos
estrelas covardes não vão ao campo

o vento uiva uma canção antiga
corre nas árvores seiva iluminada
escondidas e secas nas sombras
as folhas dançam

espelho frouxo
rosto pesado
entre caniços
a face estranha

água ocupa
entorpece o corpo dolorido
esvazia a alma das penas
preenche com metal

cabelo goteja lembranças no chão seco
pele imersa na lua
pensamentos livres em outra dimensão
o ciclo eterno

uma vez mais
vem a aurora
com seus dedos tecedores de  manhãs
são as cores da batalha da vez





Os salgueiros cegos sussurravam segredos seculares aos passantes surdos e cegos que cismam e em prosseguir mesmo assim. Eles não verão o que acontecerá.   Ele chegou de mansinho. O sol ainda hesitava em ir. As sombras formavam imagens e ideias. O som intermitente sossegava a sua alma. Aos poucos, a silhueta delicada se desenhou longe. De onde estava, podia sentir a música que a brisa extraía dos brincos dela tilintando em sua alma. Sua respiração suspensa. A brisa suave e quente no rosto, nunca soube se o calor era do vento ou dele próprio.A procura prosseguia desde o último solstício.

Uma flor lilás desenhada pela luz no bosque, o vestido quase transparente brincava com o vento. Os raios dourados de Apolo refletiam nas folhas secas do caminho e invadiam a alma dele. Eles são de materiais diferentes. Releu a carta para se certificar de que era verdade.Podia ver o arco-íris que formava através das suas asas quase transparentes. Eram mosaicos coloridos de caleidoscópio. Estava irremediavelmente hipnotizado. Ele sabia que não deveria estar ali.

Desde que a viu pela primeira vez passou  a se esquecer dos compromissos diários. Quase não havia mais pelos trançados nas crinas dos cavalos, nem leites azedos nas cozinhas, as tortas de maçã deixaram de sumir das janelas. O bosque andava tranquilo demais para ser verdade, mas era somente a primavera que chegara atemporal  no coração do elfo.

Queria se aproximar, seus pés não correspondiam. A fada assim em um banco formado por raízes de figueira parecia ainda mais inatingível. Ele girou sobre os calcanhares. Pensou em ir embora, abandonar essa ideia louca. A vida sempre fora tranquila, sossegada e alegre com as estripulias entre a obrigação. Será que fora atingido pelo feitiço da flor de Amor-Perfeito. Uma fez se metera em uma confusão sem fim por conta da plantinha. Deveria ir embora. Respirou fundo decidido. Não se moveu. A imagem da flor de lilás sentada riscando o chão com os pés ocupara a sua mente como um tsunami. Por Pã, esses sentimentos o estavam deixando maluco.

.Era claramente um encontro. Ela o esperava tranquila. Seu vestido dançava com o vento leve. Ele deveria se aproximar. Mas o que ele iria falar? Como iria dizer? Onde colocaria as mãos tremedeiras? Queria as mãos dela entre as suas. Queria sentir o ar perfumado por ela. Aroma lilás. Queria somente tocar de leve seus cabelos. Queria muita coisa. mas não se mexia.

O sol começava a dar indícios de que não ficaria muito tempo mais por ali esperando o elfo se resolver. Quando a noite dominasse tudo seria hora das magias e das mágicas, haveria muito o que fazer, sabe que não a encontraria. São de materiais diferente. Afinal, por que estava ali? O bilhete na mão o lembra   do encontro agendado, lembra da espera por outra oportunidade. Olha fixamente para a fada à espera. Ela não ficará ali muito tempo mais.

A vida através dos seus olhos os medos as dúvidas as excitações ficaram para o lado de lá Aqui somente o aconchego a certeza de que nada acontecerá a proteção

Uma palavra. um olhar, um toque, um arrepio, os sentimentos todos em ebulição ao mesmo tempo. Apolo sorriu satisfeito e levou Eros consigo, era necessário terminar o trajeto, logo logo a Lua viria com seu carro.



domingo, 7 de setembro de 2014

As vozes do furacão



Povoada por vozes
frases que não disse
respostas de perguntas perdidas
histórias irrealizáveis
de um passado surreal.

A cabeça no olho do furacão.
Berros.
Exigências.
São tornados ferozes
clamando por atenção.

Será que o rapaz aqui ao lado também escuta?

Pedras pesadas
oprimem o peito
pressionam os dedos na goela.

Não pode respirar.

Sem conseguir carregar
seu maldito fado
sempre com o grito abafado
morrendo pela falta de ar